Copacabana — faz frio e chove pouco.
Há duas noites caminho entre os vivos, mas não sou mais um deles e sei disso. E aos poucos comecei a perceber que, mesmo que poucos, existem outros como eu. Caçadores noturnos sedentos por sangue. Vampiros.
Minha história começou há duas noites, quando acordei parecendo um bêbado, mas se era bêbado, deveria estar com uma enorme ressaca, pois a sede era absurda. Foi quando descobri o que havia me tornado, pois ataquei uma jovem que comemorava o Carnaval com alguns amigos e bebi todo o seu sangue.
Uma voz em minha cabeça pedia para parar, mas eu não conseguia. Então eu matei. Pela primeira vez em meus vinte e cinco anos de vida, matei uma pessoa. E o pior, pensei que fosse sentir o mínimo de remorso e não houve nada. Uma voz em minha cabeça dizia “bom, posso conviver com isto.” Mas ainda não me parecia certo.
Contudo, a fome vinha todas as noites, cada vez mais forte… mais fome. É como se um monstro interior devorasse minhas entranhas e clamasse sempre por sangue. Sempre, sempre, sempre!
Alias, não só o sangue vem sendo um problema, existem ainda os problemas com fogo e sol. Quando a noite se foi, naquele fim de Carnaval, o sol começou a nascer devagar no horizonte, senti minhas pálpebras queimando e o rosto formigando de leve com o mínimo de claridade que nele se abateu. Um sono repentino me acercou e tive que lutar para não cair dormindo no chão.
Lutando contra o sono e buscando desesperadamente um lugar para me esconder do sol, corri por entre becos e ruelas. Algumas pessoas começavam a chegar ao centro da cidade para mais um dia de trabalho e eu passei trombando por elas. Devem ter achado estranho, mas o mais provável terem achado que eu fosse algum trombadinha correndo de policiais.
Lancei-me metrô adentro e usei meu último bilhete — bendita hora que o bilheteiro ofereceu-me a comprar a volta, e eu aceitei! — Ali dentro já não precisava me preocupar com o perigo do sol, mas ainda precisava vencer o sono e encontrar um lugar seguro para passar o dia. Afinal, apenas vampiros de Hollywood tinham seus caixões para dormirem enquanto o sol queimava os idiotas que ficassem do lado de fora, como eu. Mas não sei se conseguiria dormir num caixão, tudo bem que nunca fui fã de sol, mas um caixão era demais pra mim. Passar alguns segundos no elevador, parecia levar uma eternidade. E quando estava lotado então, putz…
A estação da Cinelândia não estava cheia. O trem que passara com alguns trabalhadores já se fora e eu a tinha agora só para mim. Que se danem os guardas do metrô, eu não podia perder tempo. Saltei para os trilhos ao mesmo tempo em que a mensagem de “senhores passageiros não ultrapassem a faixa amarela…” era emitida pelos alto-falantes.
Corri numa direção qualquer e estremeci ao ouvir o som de mais um trem vindo em minha direção. Olhei desesperadamente por um abrigo, e avistei poucos metros à frente. Saltei para dentro dele, momentos antes do trem passar zunindo atrás de mim.
Não tinha mais energia alguma, naquela alcova, em meio à ratos e baratas, novamente… tal como em meu Despertar, eu dormi e ali passei o primeiro dia de minha existência na nova vida. Cheio de dúvidas e incertezas. Precisaria buscar respostas.
Quem eu era? E minha vida normal? Meus parentes e amigos? Como prosseguir?
… foram estas perguntas que me trouxeram até Copacabana. Há duas noites que venho me adaptando. Percebi que minha força hoje é maior e meus sentidos também se aguçaram. No entanto, não sei se os poderes que mostram nos filmes, são verdadeiros ou não, pois não sei se eu é quem não sei utilizá-los, ou se não existem mesmo.
Foi caçando na Avenida Atlântica, que me deparei com outro vampiro. Ou melhor, uma vampira. Extremamente sexy, sedutora, linda e fatal.
Ela estava caçando também. Utilizara o disfarce de prostituta para se aproveitar dos turistas obcecados por mulatas brasileiras, dos empresários adúlteros e trouxas que desperdiçam todos os meses uma pequena fortuna por uma transa casual.
Ela era mulata com cabelos alisados e trajava roupas curtas e provocantes. Com um imenso salto alto e uma pequena bolsinha no ombro. Os olhos eram cobertos por uma silhueta delineadora que apresentava um olhar sedutor e fatal. Qualquer que fosse o homem — e talvez até mulher —, cairia na rede daquela viúva-negra.
Percebi logo o momento do ataque! Ela seduziu um senhor de meia-idade e caminhou com ele para dentro da Praça do Lido, seria lá o local do abate.
Não atrapalhei sua alimentação, me esgueirei pelos cantos e saltei a grade. Aguardei até que ela terminasse e soltasse o corpo vazio do pobre coitado até o chão. Quando ela começou a se afastar, pude ver sua pele se tornando mais bronzeada do que anteriormente, era o sangue dele se transformando dentro dela e lhe dando uma aparência falsa de vida humana.
— … é, dá licença moça…
Ela se virou com um olhar que me fulminou. Olhou ao redor para se certificar de que estávamos a sós.
— O que cê quer?
— Eu… er… percebi que temos algo em comum, queria saber…
— Se cê é michê, num posso fazer nada. Num sô puta porque escolhi, faço cadiquê o dinheiro é fácil e é tudo que sei fazer.
— Eu falava com relação de sermos…
Então revelo minha face vampiresca para ela. Apresento minhas presas.
No mesmo instante, quase como que reagindo por instinto, ela arregala os olhos e apresenta também suas presas e se eriça como um gato pronto para brigar. O tom de seus olhos muda para um amarelo dourado e sinto, tenho que admitir, um pavor de sua presença intimidadora.
— Calma, calma gatinha — eu digo a ela tentando acalmá-la —, não estou querendo arrumar briga não. Só vim atrás de você porque percebi que éramos iguais e preciso de algumas respostas.
A chuva começa a apertar.
— Quanto tempo que cê é assim?
— Dois dias. Acordei no último dia de carnaval, e ataquei uma garota.
Ela fica um momento pensando.
— Vi algo d’uns corpo que apareceru sem sangue nu centro da cidade, então era você. — concordo apenas movendo a cabeça. — Vamu sair dessa chuvarada, moro num sobradinho aqui perto. Tu pode passar o dia lá hoje, e colocamos isso em pratos limpos.
Assim conheci Daiana, pelo menos foi como ela se apresentou para mim.
— Então diga, William, que cê sabe sobre ser vampiro?
— Te digo o que sei, você me ensina o que sabe?
Ela apenas sorriu. Parecia saber de algumas coisas. Bom, era o que eu tinha para aprender a ser o que era. Uma prostituta semi-analfabeta que cobrava seus programas com a vida de seus clientes.
Era o que eu tinha, precisava me acostumar e me contentar com o que tinha, por enquanto.
— Tá bom então, néim. Fica quietinho enquanto te conto o que eu sei.
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