Dagga estava sem fôlego quando alcançou o alto da montanha. Seus pés, grandes, ferviam como brasa, mas não o deixaram na mão. A subida nas Tamandarins, as montanhas gêmeas, não era fácil, mas não era isso que afligia o grandalhão.
– Intruso! – cuspiu ao avistar seus companheiros de patrulha.
Rubracor e Cuspidor saltaram das posições onde estavam. Silas levantou devagar palitando os dentes.
– Porque carrega tantas coisas, Rubracor? Um dia você vai mostrar o nosso caminho ao inimigo. – Silas fez ouvir seu vozerão.
– Acho que temos assuntos mais sérios, Silas. Não é hora para tratar das coisas que carrego e não, nunca nos atrapalhou. – respondeu Rubracor com urgência na voz.
– Intruso! – disse mais uma vez Dagga, confuso por não lhe darem atenção e estarem discutindo por algo sem importância naquele momento.
– Acalme-se, Dagga, recupere o fôlego e conte-nos o que viu. – como de costume, o vozerão calou a todos.
– No rio… Um viajante… – a tensão tomara conta do ar dos pulmões e este teimava em continuar falando.
Os bons olhos de Silas procuraram na direção do rio.
– Posso ver daqui…
Spich! Cuspidor cuspiu antes de falar.
– O que estão esperando? Vamos saber o que ele quer por aqui. – Cuspidor falava e endireitava as correntes que usava como cinturão para segurar os trapos que chamava de calças. Silas sorria sempre que presenciava a cena.
– Não vamos assim. Temos que saber mais do invasor. – ordenou Rubracor, o meio-gigante de pele vermelha.
Os meio-gigantes se entreolharam como de costume quando Rubracor tentava dar uma ordem. Sempre quisera ser líder daquela patrulha, mas nunca teve a aprovação dos seus companheiros e, até que o atual caísse em batalha ou por qualquer outro motivo, este seria Silas Trovejador.
Silas olhou para as nuvens e procurou para que lado o vento soprava.
– Podemos cercar ele e saber o que ele quer aqui. – insistiu Rubracor com seu plano,
– Spich! Pela correnteza Rubracor, fecha a matraca! – Cuspidor passou por todos e encostou o narigão no nariz fino de Rubracor. Já estava com a mão na espada curta embainhada que usava como adaga.
– Ele é um homem, companheiros, e trás muitas bolsas.
– Um homenzinho que vende coisas. – Silas concluiu para Dagga.
– Precisamos falar com e… – Rubracor não terminou a frase com temor da reação do grupo. Cuspidor voltava a encará-lo de perto.
– Juntem suas coisas, vamos descer. – ordenou o bronzeado meio-gigante e líder da patrulha.
Para os meio-gigantes “coisa” definia bem tudo que desconheciam, e o que conheciam também! Ferramentas, armas e armaduras, utensílios e tudo mais que eles conseguissem carregar nas costas ou na cintura.
A descida era íngreme, mas não para eles. Todos estavam acostumados com aquelas montanhas, o mais novo da patrulha, Cuspidor, nunca havia saído dali, aliás, nascera e criara-se nas montanhas gêmeas.
Logo alcançaram os Cachos de Ravarindar. Estava sempre cheia de vida e ativamente movimentada. A paz que reinava no lugar desinibia as criaturas, que além do Povo da Montanha, como eram conhecidos os meio-gigantes pelos seres do bosque, ninguém mais ousou colocar os pés lá, exceto aquele humano.
Mariposas luminosas e escliches, os duendes voadores, viviam suas vidas livremente. Qualquer outra raça acharia no mínimo curioso, o fato dos habitantes dos bosques não estranharem a presença dos meio-gigantes. Os grandalhões apesar de desengonçados mantinham a harmonia com os Cachos de Ravarindar, e mais, os protegiam. De quê, não se sabia, pois nenhuma ameaça tinha se feito presente após a famosa Invasão, quando o pai de Silas e ele, ainda muito jovem, protegeram o bosque dos demônios Lambares.
Liderados por Silas, rapidamente a patrulha chegou às margens do Filete, um rio de “proporções pequenas” para os meio-gigantes, que margeava o bosque. Ele estendeu a palma da mão e cada um tomou sua posição por trás das árvores.
O homenzinho libertou-se da grande bolsa. Não se preocupava em chamar atenção, Silas notou. Agora ele a abria e retirava uma caixinha prateada e dentro dela um saco de couro, talvez de coelho. Rubracor estava maravilhado com tudo aquilo, Cuspidor impaciente e Dagga quieto, parecia amedrontado.
“Que tipo de feitiço aquilo pode ter?” se perguntou.
Despreocupado, o homenzinho juntou alguns galhos finos e fez o seu primeiro “feitiço”. Ele retirou da bolsa de couro duas pequenas pedras, choco-as e criou fogo, instantâneo! Cuspidor pensou cuspir, Rubracor se conteve soltando uma bufada, enquanto Dagga e Silas se concentravam no intruso.
Os ruídos que seguiram eram ruídos de animais, grunhidos, latidos, berros e rosnados que aos ouvidos de um desconhecido eram apenas sons dos animais do bosque, mas para os meio-gigantes, e em especial os membros daquela patrulha, eram comandos para aproximação e abordagem ao invasor.
O homenzinho continuou seu ritual. Sim, um ritual, fazia com tanta maestria e leveza que passava a sensação que ele poderia fazer aquilo pelo resto dos seus dias. Retirou um bule e colocou água para ferver, retirou um pires, uma xicara, um pequeno pote com um granulado branco, uma colherzinha e o chá já estava pronto.
O que intrigava Silas, que já estava as suas costas, era o fato do homem permanecer completamente à vontade e despreocupado. “O que estava tramando?”, ele não sabia, mas estava despreocupado ou queria chamar atenção e ser achado.
Já tinha dado de cara com um sujeito com essas características, não esquecia. Roupas finas, bem trabalhadas, sapatos… Sim, sapatos. “Pela correnteza! Para quê servia aquilo?”, um chapéu, um cinturão de fivela dourada e muito bonito. E nas costas a grande bolsa, ou um fardo? Era muito pesado. Um ar de riso nos lábios e estranhamente doce, cheio de palavras na boca.
O homem retirou uma caderneta de anotações enquanto Silas se aproximava pelas suas costas. Os outros estavam em alerta e com ordens para atacar ao seu sinal.
– Primeira anotação… Não tive que esperar muito. Deu até para tomar uma xícara de chá. Você é muito lento… Qual é o seu nome?
A respiração de Silas parou por alguns segundos quando o homem bem vestido girou para encará-lo. As adagas estavam a postos, porém ele não reagiu. A patrulha permaneceu perplexa diante da negativa do seu líder, esperavam pelo sinal de Silas.
– Hmmm – gemou o homem avaliando a situação e a face esganiçada de Silas. “Raciocínio lento…” escreveu sem dizer nada.
– Se acha esperto, homem da bolsa? – perguntou Silas com uma das adagas rapidamente posta no pescoço fino do sujeito, fazendo-o ergue a cabeça e voltar a olhar nos seus olhos castanhos.
Aos poucos surgiram Dagga, Cuspidor e por último o barulhento Rubracor.
– Não me acho tão esperto, meu amigo grandalhão – disse enquanto levantava fechando a caderneta e guardando em um dos tantos bolsos do seu casaco cor de rubi – Porém não pude deixar de ouvir o ruído do seu chocalho ambulante. – e virou-se para admirar Rubracor e suas tralhas.
Realmente, a visão que um humano poderia ter de Rubracor era a de um chocalho ambulante, ou uma porta-treco, tudo estava pendurado nele, podia-se ver até crânios de vários tipos de animais abatidos.
– Você fala muito bem a minha língua, grandalhão, com quem aprendeu?
– Essa é a nossa fala! – devolveu com aspereza o meio-gigante que continuava inquieto, pois até agora não sabia das intenções do homem.
– Ele veio nos ver, Silas. – concluiu Rubracor.
– Silas! Então você tem um nome, gigante, e é um nome da minha gente.
Se estivesse muito perto de Rubracor, Silas o teria estrangulado. Rubracor entregara a sua identidade a um desconhecido.
Silas apertou a adaga e esta tirou um fio de sangue do pescoço do homem que continuava firme a sua frente.
– Não se zangue – disse o homem já com o sorriso desfeito no rosto, sentia dor e a fria lâmina do meio-gigante. – meu nome é Malvo Cantiga e vim a mando Eder, Rei de toda Costa Larga! – Malvo pareceu um arauto anunciando a entrada de um rei.
Mesmo após saber o nome do homem, Silas continuou incerto. Dagga também.
O jovem meio-gigante, Cuspidor, montava guarda. Estava de olho nos arbustos e árvores para não serem pegos de surpresa.
– Por que veio para cá, homem Malvo?
– Eder, Rei de toda Costa Larga – falou como arauto novamente. – soube da existência da sua raça tão próxima aos seus domínios e ordena a presença do líder do seu povo para jurar lealdade.
– Silas não vai a lugar nenhum, homem Malvo! – decretou Dagga.
– Eu posso ir, Silas. – ofereceu-se Rubracor e mais uma vez todos o encaram, inclusive o Malvo, intrigado.
– Quem é o seu líder? – questionou Malvo afastando a lâmina fria de Silas da sua garganta – E em sinal da boa vontade trago presentes, para todos! – Malvo olhou para Rubracor.
Rubracor ficou excitado com a ideia de novas coisas “úteis” para carregar, Silas percebeu. Dagga desaprovou a ideia balançando a cabeça negativamente, Cuspidor não opinou.
– Não sou dono dos seus passos, Rubracor. Seus pais não estão mais entre nós e você já é feito o suficiente para decidir sua vida. Vá como o homem Malvo se quiser, mas não volte para as Tamandarins. Não será bem vindo se partir, temos que proteger nosso povo e nosso lar.
Do alto da montanha, Dagga, Cuspidor e Silas acompanhavam a partida de Rubracor para longe, junto com Malvo Cantiga, um dos homens libertos. De repente outros libertos surgiram às costas da dupla, talvez tenham sido eles que deixaram Dagga e Silas inquietos, mas só agora eles tinha se revelado. Espancaram Rubracor, retiraram-lhe as tralhas que carregava, acorrentaram-no e o levaram, tudo isso sob as ordens de Malvo.
Os meio-gigantes observaram tudo de longe e incapazes. Dagga e Cuspidor aguardaram ordens do líder.
– Vamos trazê-lo de volta… – eles ouviram antes que Silas descesse as Tamandarins aos pulos, com ódio nos olhos.
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